O Solar dos Lelis é uma mansão familiar típica dos anos 70. Naquela época, entre os abastados, predominava uma concepção arquitetônica e de interiores mais vetusta, inspirada na sobriedade elegante do estilo clássico inglês e na mobília de origem francesa, com seus aparadores “Luiz XV” e adornos de madeira talhada em dourado. Logo após o pórtico de entrada, à esquerda do hall, há uma sala reservada para visitas. É ali que fui recebido, na companhia de minha esposa, na noite do último dia 22 de dezembro, uma sexta-feira de muito calor em Guaíra (SP), minha terra natal e objeto, há décadas, de minha insistente análise como jornalista radicado em Brasília há quase 30 anos. Um típico e por vezes divertido caso do clássico “eu saí de Guaíra mas Guaíra não saiu de mim”. Fui recebido , com a educação e gentileza que são suas marcas registradas, pelo príncipe destronado, José Eduardo, o primeiro prefeito reeleito da história da cidade e também o primeiro a perder o mandato como vítima da prática de “Lawfare”, o uso de manobras jurídico-legais usadas para perseguir pessoas e destruir reputações. As vestes do príncipe destronado denunciavam o calor insuportável da terrinha. José Eduardo vestia a indumentária clássica dos bem-nascidos em dias quentes: pólo de grife, bermuda acima do joelho e um tênis minimalista “Vert” , marca da moda que costuma calçar os pés de Faria Limers no Brasil e jornalistas da Capital da República metidos a besta que gostam de viajar pela Europa, onde a mesma marca tem o nome de “Veja”. Dona Edna chegou um pouco depois. Elegante como sempre, trajava um vestido de tecido leve, algo parecido com seda, acinturado e de estampas negras sobre um fundo “off white”. Na mansão que abriga a matriarca dos Coscrato Lelis, o que mais se destaca, muito além da decoração aqui descrita, é a indignação de Dona Edna com o “silêncio dos bons” diante da “ousadia dos maus”.
BLENDS FRANCESES, BURRATA, DAMASCO E CASTANHAS
Não cheguei de mãos vazias. Trouxe de Paris, que visitei em abril, como presente a José Eduardo, duas garrafas de vinhos produzidos no sul da França. Um branco e um rosé. Nada de exclusivo mas essencialmente honesto. Blends leves, assemblages feitos da combinação de duas ou mais variedades de uva. Conversa vai, conversa vem, acabei bebendo os presentes junto com José Eduardo. Já na chegada, antes de abrir os franceses que eu trouxe da cidade-luz, José Eduardo, apreciador de vinhos ,já bebericava um espanhol de boa safra. Num aparador lateral repousavam pratos com burrata, damasco e castanhas. A longa conversa (foram mais de cinco horas), da qual participou ativamente Dona Edna, também foi entremeada por uma deliciosa torta de frango servida, com carinho, pela Rainha-Mãe. A elegância, os sabores e as amenidades que adornaram, durante todo o tempo, aquele encontro, não foram capazes, porém, de amainar a tensão traída pelos olhos tristes de Dona Edna e a falsa indiferença explícita nos despistes da oratória de José Eduardo. O que vi ali, diante de meus olhos e dos olhos atentos mas discretos de minha esposa, foi uma mãe inconformada e um filho dividido.
SILÊNCIO DOS BONS OU A BOCA FECHADA DOS COVARDES?
Dona Edna, a “Rainha-Mãe”, é a única mulher na história de quase 100 anos de Guaíra a ser esposa e mãe de prefeito. Nas diversas vezes em que foi tragada pela história, quis o imponderável que ela fosse submetida a duras provações. Orfã ainda bebê, Dona Edna sabe muito bem o quanto custam os dissabores da vida e talvez seja por isso mesmo que hoje possa posar, de cabeça erguida, como uma “Dama de Ferro”. No final dos anos 80, o esposo, Adnaer de Barros Lelis , então vice-prefeito; foi obrigado a assumir a prefeitura depois da morte do mandatário da época, Fábio Talarico. Adnaer esteve à altura do que o momento exigia e concluiu, com êxito, o mandato. Na mesma época, a então Coagre – Cooperativa dos Agriculores de Guaíra e Região, delírio de produtores rurais do município que queriam competir com gigantes do setor, começava a adernar. Dividido entre o dever de governar e a obrigação de honrar, como produtor-dirigente, as dívidas crescentes da mal-sucedida cooperativa, Adnaer, um homem correto e literalmente defensor do que é combinado no fio do bigode, diante da fuga sorrateira de “colegas” da entidade, não abdicou de suas responsabilidades. Assumiu, praticamente sozinho, como fiador, o passivo da cooperativa. A decisão honrada, digna de grandes nomes que não fogem dos imperativos do destino, custou à família pelo menos uma década de esforços inimagináveis para pagar a dívida e manter o patrimônio. José Eduardo, na época muito jovem, foi lançado aos desafios da vida como ela é e despontou como hábil negociador ao arrancar, junto aos credores, composições de dívidas que possibilitaram a sobrevivência digna da família e a manutenção de todas as propriedades. A “Rainha-Mãe” já se via, naquela época, diante da maldade embutida no “silêncio dos bons”, na boca cinicamente fechada daqueles que abandonaram seu marido à própria sorte. Por dever de ofício, este jornalista não é tão cuidadoso com as palavras como Dona Edna, e por isso mesmo, provoca: não seria mais apropriado falar em “boca fechada dos covardes” do que “silêncio dos bons” ? Não consigo ver bondade, também por dever de ofício, em quem foge às responsabilidades e se esconde por interesses inconfessos ou por medo puro e simples.
OS COVARDES...ELES DE NOVO
A indignação de Dona Edna com o silêncio dos “bons” (que para mim, repito, não passam de covardes) permeou toda a conversa do encontro. Trinta anos depois de terem sido submetidos à provação daqueles tempos difíceis, os Coscrato Lelis foram tragados, mais uma vez, por um destino que parece perseguí-los em busca de algum sinal de fraqueza. Em 2020, a “Rainha-Mãe” foi submetida à uma montanha-russa de emoções. No mesmo ano em que viu seu primogênito se tornar o primeiro prefeito reeleito da história da cidade, Dona Edna também viu o filho ser vítima de uma das mais atrozes e injustas perseguições da histórica política de Guaíra. Adversários inconformados com a derrota e dispostos a tudo para impedir que José Eduardo tomasse posse, lançaram mão de um golpe institucional marcado pela prática explícita de “Lawfare” , usando e abusando de chicanas jurídicas para atribuir a José Eduardo crimes que ele não cometeu. Conseguiram impedir que José Eduardo assumisse um mandato para o qual foi legitimamente eleito. Mas fracassaram na intenção de destruir a reputação do príncipe destronado. Com trono ou sem trono, com cetro ou sem cetro, José Eduardo continua sendo amado pelos guairenses e assombrando as noites de Antonio Manoel, o prefeito-tampão que se aproveitou do golpe para se apresentar como “salvador do município”. Parece haver, entre os guairenses, a impressão sedimentada que Junão só está no comando do município porque não enfrentou José Eduardo nas urnas. Só concorreu e “venceu” depois que arrancaram José Eduardo do poder. A oportunidade faz a hora do impostor.
O PRÍNCIPE E O PEQUENO PRÍNCIPE
Ao longo de toda nossa longa conversa, José Eduardo teve o cuidado, mesmo ao lado da mãe indignada, em não assumir compromisso como candidato nas eleições municipais de 2024, contrariando tudo o que aqui já foi escrito. O príncipe destronado considera que pode fazer justiça à própria história resgatando a verdade sem que isso tenha necessariamente de vir acompanhado de sua volta ao poder. Atualmente lendo “O Príncipe”, de Maquiavel; José Eduardo deveria ler também “O Pequeno Príncipe”, de Antoine de Saint-Exupéry. É certo que Maquiavel, um gênio da política, mostra em sua obra como, por meios heterodoxos, se pode exercer indiretamente o poder e vencer os inimigos fora das arenas tradicionais. Mas é arrebatador como Saint-Exupéry deixa claro, como, ao fim e ao cabo, somos responsáveis por aquilo que cativamos. Dividido entre ser pequeno como o Grande Príncipe de Maquiavel e ser grande como O Pequeno Príncipe de Saint-Exupéry, José Eduardo deveria olhar para trás e tentar visualizar aquele homem de bigodes fartos que, muito antes de perder a fala vítima de um acidente vascular cerebral, disse , a plenos pulmões diante dos desafios que a vida lhe impunha: “vou honrar aquilo que esperam de mim, com coragem, retidão e crença na verdade”. O príncipe destronado também deveria olhar para trás mais uma vez e “reler” a “biografia” da Rainha-Mãe. Uma mulher que perdeu o pai quando ainda era bebê, foi primeira-dama corajosa num momento conturbado da história do município, ficou ao lado do marido e dos filhos nos mais desesperadores momentos daquele tempo, obrigou-se a rever a própria vida ao tornar-se esposa de um homem que exige cuidados especiais, foi mãe de prefeito aclamado, foi mãe de prefeito perseguido e ainda encontra forças, na terceira idade, para se indignar, para não abaixar a cabeça diante de desmandos e injustiças. Vinhos franceses são de fato, saborosos. Viagens encantam a alma. Belas esposas nos mantém felizes. Abrir novas fazendas nos dão uma sensação de desbravadores. Porém, nada disso consegue ser mais importante do que uma herança de coragem. No Solar dos Lelis, habitam bravos. No Solar dos Lelis, vivem corajosos que teimam em desafiar o mal humor da vida.No Solar dos Lelis não há espaço para covardes.
Na imagem deste post, inteligência artificial mostra Dona Edna como a Rainha-Mãe: as dificuldades e desafios impostos pela vida e pelo silêncio dos covardes diante do mal praticado pelos cínicos não foram capazes de fazer com que a matriarca perdesse a capacidade de se indignar. Altiva, a Rainha-Mãe é um exemplo de coragem a desafiar a indecisão do próprio filho
Conrado Vitali,54, guairense radicado em Brasília (DF) desde 1998, é jornalista e political marketer, tendo sido vitorioso em várias campanhas eleitorais que coordenou em sua terra natal (Guaíra-SP).