De documento em documento, vai se percebendo que por baixo da superfície de “palavras que não tem curva” há um subterrâneo repleto de catacumbas
Por trás das cortinas do marketing oficial de uma prefeitura, nada é tão ruim que não possa piorar mais um pouco. Ato contínuo, nada é tão péssimo que não possa descambar para o escárnio. E assim, de documento em documento -meticulosamente descobertos e revelados por este colunista “enxerido” e “inconveniente” – vai se percebendo que por baixo da superfície de “palavras que não têm curva”, há um subterrâneo de catacumbas que não têm fim. É assim também que agora se sabe que o prefeito de Guaíra (SP) – terra natal e distante deste que insiste em vos falar direto de Brasília(DF) – afrouxou regras de loteamentos para favorecer os próprios empreendimentos imobiliários. O prejuízo transversal estimado aos cofres públicos, de acordo com planilhas comparativas que aqui serão dissecadas, pode passar de R$ 17 milhões. Porém, antes de visitarmos o fundo do poço, relembremos o que a aconteceu, num passado recente, ao redor dele. Afinal de contas, como já nos ensinou Ariano Suassuna, “em volta do buraco, tudo é beira”.
O BARRACO NA PREFEITURA
Quando ainda comia pelas beiradas antes do oportunismo que o levou ao poder, o atual mandatário da cidade, Antonio Manoel, vivia às turras com o governo municipal que, então comandado por José Eduardo Lelis (2016-2020), enquadrou a ganância do empresário que enriqueceu fatiando a herança. Sem medo da cara feia do filho de Dona Eliza, o filho de Dona Edna assumiu o poder com o objetivo de acabar com a promiscuidade entre o público e o privado na pequena cidade de 40 mil habitantes do norte paulista. Entre suas medidas estava um pacote de novas e duras regras para a concessão de autorização de loteamentos urbanos, a mina de ouro de Antonio Manoel. José Eduardo tinha por “secretário de finanças” de sua administração um homem experiente: o ex-prefeito José Carlos Augusto. Pois foi com Augusto, no mezanino da sede de poder, que Junão engatou um barraco histórico. Inconformado por ter de se enquadrar, depois de anos de permissividade, às rigorosas exigências do Governo José Eduardo, Antonio Manoel, mal sucedido na tentativa de meter medo no prefeito, foi tirar satisfações com quem ele achava que poderia intimidar. Sim, José Carlos Augusto. O diabo é que o ex-prefeito e assessor direto de José Eduardo não se fez de rogado e assim como o chefe, nem deu trela para Junão, reafirmando que “se ele quisesse que seus loteamentos fossem liberados, que cumprisse as novas regras”. O novo ordenamento exigia gastos expressivos dos “empreendedores” para garantir a qualidade estrutural dos loteamentos, o que, obviamente, diminuiu drasticamente a margem de lucro de quem sempre gastou pouco e ganhou muito. Com a lógica invertida, o homem cuja palavra não tem curva, deu piruetas de ódio, invadiu a prefeitura e foi pra cima de José Carlos Augusto, já que com José Eduardo nem conversa tinha. Diz a lenda, que até as garças do lago Maracá, que fica em frente ao Paço Municipal, voaram em retirada diante da gritaria e dos impropérios vomitados por Junão em busca de um “culpado” por seus negócios com o poder público deixarem de ser lucrativos como sempre haviam sido . Em determinado momento da acalorada discussão que quase chegou às vias de fato, em meio a servidores que interviram para o clássico “deixa disso”, José Carlos teria respondido aos xingamentos de Antonio Manoel: “você quer regras mais frouxas para ganhar dinheiro em cima da prefeitura? Então vira prefeito antes!”. Ao que tudo indica e, como se verá a seguir, foi exatamente o que Junão fez. Eis, logo abaixo, as catacumbas.
MENOS REGRAS, MENOS INVESTIMENTOS, MAIS LUCROS
O que se verá a seguir, numa rápida viagem pelo escárnio , é como o prefeito de Guaíra (SP) e seus sequazes alteraram, depois de assumirem a prefeitura, as cartas de diretrizes que são emitidas pelo poder público estabelecendo as obrigações dos loteadores. É o que será demonstrado nas próximas linhas, para espanto de quem ainda duvidava da existência das catacumbas guairenses. Prepare o estômago. Entre abril e julho de 2021, quando já se preparava para disputar as eleições suplementares daquele ano mas ainda não passava de um pré-candidato, Antonio Manoel solicitou à prefeitura comandada pelo então prefeito interino Edvaldo Morais ( e seu então futuro rival no pleito) as diretrizes para o loteamento denominado “Antonio Manoel da Silva II”. Naquela época, depois de assumir como prefeito interino, Edvaldo deu continuidade às rigorosas exigências da prefeitura inauguradas pelo governo anterior, de José Eduardo Coscrato Lelis. Assim, Junão, que ainda não tinha a “caneta mágica do poder” na mão, foi informado pelo Governo Edvaldo, por meio do DEAGUA (Departamento de Água e Esgoto de Guaíra) que, se quisesse levar à frente seu empreendimento teria de cumprir várias e rigorosas regras. Entre as quais, a construção de um poço profundo com vazão mínima de 250 metros cúbicos por hora e um reservatório capaz de garantir, no mínimo, um terço da vazão consumida diariamente. Além disso, a Administração Edvaldo, também por meio do DEAGUA, exigiu nas diretrizes que Antonio Manoel construísse, no empreendimento, um novo sistema de coleta e tratamento de esgoto, já que o existente à época não suportaria a demanda do novo bairro. O que fez então Antonio Manoel diante da muralha de exigências? Simples: virou prefeito.
A “CANETA MÁGICA” E O LOTE “CAMALEÃO”
Depois de derrotar Edvaldo Morais nas suplementares do final de 2021 e assumir como prefeito-tampão, Antonio Manoel teve acesso, como incumbente eleito pelo povo, à desejada “caneta mágica” dos mandatários. Foi com ela, na condição de chefe do executivo local, que tudo mudou para “melhor”. Especialmente para o próprio Junão, é claro. Primeiro tratou de nomear seu coordenador de campanha para a direção do DEÁGUA, sim a autarquia responsável pelas diretrizes que o obrigavam a colocar a mão no bolso se quisesse empreender. Um olho no gato e outro no peixe. Nomeou para a chefia do Departamento de Obras um engenheiro pronto para engavetar embaraços burocráticos para os negócios do chefe. Tudo, tudinho, na maior “inocência”. No município das “maravilhas”, onde há uma caneta mágica também pode existir um lote “camaleão”. Uma no cravo, outra na ferradura. Depois de aparelhar os órgãos reguladores com apaniguados, Antonio Manoel dedicou-se à nomenclatura criativa. No mesmo processo administrativo em que solicitou, quando ainda não era prefeito, as diretrizes para o loteamento que levava o nome de seu pai (Antonio Manoel da Silva II), mudou o nome do mesmo empreendimento para Residencial Maria Luiza (nome de sua neta). Trata-se, de forma cuspida e escarrada, exatamente da mesma área, do mesmo loteamento e do mesmo processo administrativo. Para dar uma pincelada de mudança no que gritava de tão igual, diminuiu o número de lotes oferecidos, permitindo assim - “voalá” – que tanto o DEAGUA quanto o Departamento de Obras da Prefeitura, subordinados ao seu comando como “prefeito do município”, pudessem então, na maior “pureza” e na mais “imaculada” das intenções...mudar as diretrizes de autorização do loteamento, transformando o tigre das exigências do Governo Edvaldo de 2021 num gatinho molhado e inofensivo do Governo Junão de 2022. As novas e “inocentes” diretrizes para o loteamento que se chamava Antonio mas foi rebatizado de Maria Luiza diminuíram as exigências a ponto de proporcionar uma economia de aproximados R$ 17,6 milhões para o bolso de nosso herói, o empreendedor Antonio Manoel. Se a água não chegar ou o esgoto explodir , não será culpa dele, é claro. A prefeitura comandada por ele aprovou tudo, não é mesmo? Nada que não possa ser resolvido pelo prefeito Antonio Manoel, afinal o dinheiro público é para essas coisas mesmo. Que mal há em “Antonios” que se ajudam? A “solidariedade” é algo que encanta. Principalmente se for praticaca com dinheiro da viúva (mas pode me chamar de prefeitura).
A MALANDRAGEM DOS NÚMEROS
As novas e amistosas diretrizes apresentadas a Antonio Manoel Empreendedor por ninguém menos que Antonio Manoel Prefeito são um pergaminho de malandragens feitas na medida para maquiar, na cara dura e no mais fino óleo de peroba, o objetivo escancarado de diminuir os custos do empreendimento. É assim que, por exemplo e lá pelas tantas, se constata que entre as diretrizes de 2021 (sob Edvaldo) e 2022 (já sob Junão), diminiu-se a densidade populacional de habitantes por lote de 5 para 4. Só aí a prefeitura de Antonio Manoel Prefeito presenteou o empreendimento de Antonio Manoel Loteador com nada menos que R$ 900 mil de economia em exigências que deixaram de ser feitas. Outra: ao contrário das diretrizes de 2021, quando Edvaldo era prefeito; as de 2022, já com Junão como soberano do município, a prefeitura comandada por ele mesmo deixou de exigir a construção, pelo loteador (não por acaso, Junão também) de uma Lagoa de Tratamento de Esgoto, de uma Estação Elevatória de Esgoto, de Emissários e Aquisição de Áre para construção de lagoa. Para simplesmente derrubar todas essas exigências como se mata uma mosca, o Departamento de Engenharia e o Departamento de Esgoto e Água , comandados por Antonio Manoel prefeito, permitiram, “na maior boa vontade e sem o menor interesse” que o Antonio Manaoel loteador lançasse o esgoto direto na rede existente. Não é muito lindo tudo isso? O prefeito que fiscaliza é o mesmo que empreende e o mesmo que controla os órgãos reguladores que definem o que vão exigir dele mesmo. Resultado: mais R$ 9,5 milhões que não precisaram sair do bolso de Junão. Mesmo para quem já viu até elefante voar aqui em Brasília, é difícil acreditar que numa cidade pequena do interior de São Paulo quase ninguém, à exceção heróica, mais uma vez de Edvaldo Morais, que denunciou a coisa toda ao MP; tenha se revoltado com tamanho escárnio.
Na imagem deste post, quadro comparativo elaborado por perícia de engenharia mostra como o afrouxamento nas diretrizes abriu um rombo de mais de R$ 17 milhões no conjunto de exigências que a prefeitura de Guaíra apresentava aos loteadores. Na coluna vermelha, as exigências de 2021 (governo Edvaldo) e na amarela, as exigências de 2022 (governo Junão) Nada como um governo após o outro.Principalmente se o “outro” for comandado por um loteador.